20 outubro 2006

Domus


Costa Nova






Vamos os dois ao longo dos dias felizes

conversando e ouço o que dizes

como se quem falasse fosse eu;

(adeus palavras, sonhos de beleza,

montanhas desoladas da infância

donde tudo se via: a alegria

e a cegueira do que não se via;)

vês agora o que eu vejo, a minha sombra

caminhando a teu lado num tempo perdido

quando eu ainda não tinha morrido?



(Adeus perfeição, adeus imperfeição.)

Às vezes pergunto-me se valeu a pena,

se não haveria outra solução,

se não poderia, por exemplo, ter embarcado

num desses barcos que aparecem sempre

milagrosamente na última estrofe,

e se tu não poderias ter ficado

no cais, ou em alguma metáfora mais

imperiosa, partindo também donde te via,

e se assim não teria tudo sido

menos improvável e menos cansativo.



Infelizmente não havia barco onde

coubessemos eu e as minhas lembranças;

tudo o que havia, tudo o que realmente havia,

a ti o tinha dado e

dando-to tinha-to roubado,

e a minha própria morte pairava

entre ti e mim indecisamente,

como uma ideia, não como algo evidente.



Agora volto a sítios vastos

uma última vez, com hesitantes passos

subo as escadas e bato à porta

e tu abres-me a porta embora estejas morta

e embora eu esteja morto, como se fôssemos

visitados pelo mesmo sonho.



de Manuel António Pina