Costa Nova
Vamos os dois ao longo dos dias felizes
conversando e ouço o que dizes
como se quem falasse fosse eu;
(adeus palavras, sonhos de beleza,
montanhas desoladas da infância
donde tudo se via: a alegria
e a cegueira do que não se via;)
vês agora o que eu vejo, a minha sombra
caminhando a teu lado num tempo perdido
quando eu ainda não tinha morrido?
(Adeus perfeição, adeus imperfeição.)
Às vezes pergunto-me se valeu a pena,
se não haveria outra solução,
se não poderia, por exemplo, ter embarcado
num desses barcos que aparecem sempre
milagrosamente na última estrofe,
e se tu não poderias ter ficado
no cais, ou em alguma metáfora mais
imperiosa, partindo também donde te via,
e se assim não teria tudo sido
menos improvável e menos cansativo.
Infelizmente não havia barco onde
coubessemos eu e as minhas lembranças;
tudo o que havia, tudo o que realmente havia,
a ti o tinha dado e
dando-to tinha-to roubado,
e a minha própria morte pairava
entre ti e mim indecisamente,
como uma ideia, não como algo evidente.
Agora volto a sítios vastos
uma última vez, com hesitantes passos
subo as escadas e bato à porta
e tu abres-me a porta embora estejas morta
e embora eu esteja morto, como se fôssemos
visitados pelo mesmo sonho.
de Manuel António Pina